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Tão Grande Quasenada

Livro de biografias ficcionais (2004, Tomo Editorial).
Três crianças – duas meninas e um menino – tornam-se namorados num triângulo em que cada vértice é amado pelos outros dois. Eles são conscientes de sua diferença em relação às convenções e irão descobrir, em suas trajetórias rumo à idade adulta, outras histórias de vidas; histórias que mostram as mudanças do cotidiano no período de um século e formam um universo acolhedor para a liberdade existencial dos três.

TRECHO DO LIVRO

Inocência sabia do brinquedo de Lara comigo nos esconderijos do jardim botânico. Ela achava graça. Esse saber cúmplice de Inocência tornava mais próximo o horizonte daquilo que nós três sabíamos que estava para acontecer.

Um dia Lara me contou que ela e Inocência, naquela manhã, haviam se beijado no horário do recreio no colégio. Esse foi um dos momentos mais intensos da minha vida: os olhos faceiros de Lara, seu sorriso por estar a me contar o que acontecera e por ver em meu rosto também um sorriso. Beijamo-nos, um calorzinho tranquilo estava dentro e em volta de nós, envolvendo abraço e beijo. Ainda sinto nos meus dedos a textura da blusa de Lara, continuo ouvindo as vozes das meninas que passavam na calçada do outro lado da rua. Aquele calorzinho que vinha de Lara me comunicava como um amor poderia ser para sempre, cada vez mais para dentro, para o fundo, sempre mais para fora, para tudo.

Perguntei a Lara como acontecera o beijo com Inocência. Elas haviam se retirado para um canto do pátio na hora do recreio. Falavam sobre o exame de matemática que aconteceria dali a poucos dias. Nenhuma das duas estava com vontade de estudar. Conversaram sobre novas pinturas que haviam iniciado na escolinha de artes do colégio. Permaneceram em silêncio, olhando as outras crianças andando pelo pátio. Os ramos debruçados da árvore em que as duas estavam encostadas deixavam-nas semiocultas das outras.

Lara sentiu sonolência prazerosa ouvindo as crianças brincar, o vento nas folhas, o mundo diluído através das pálpebras semicerradas, o sol filtrado pela ramagem. Ela estava ali, sentindo-se tão próxima e distante do pátio escolar, achando os raiozinhos de sol tão lindos. O sino ia dar seu primeiro badalo chamando para o reinício das aulas. Inocência estava ao seu lado, parecia também absorta nos raiozinhos, no murmúrio das folhas e das crianças.

O sino tocou. As crianças começaram a retirar-se do pátio, voltando para as salas. Lara e Inocência permaneceram sob a cobertura dos ramos. Houve um olhar e  sorriso em seus rostos. Sorriso que se tornou encabulado porque havia algo se prometendo iminente no olhar prolongado das duas. Lara beijou a face de Inocência. As mãos se encostaram, os rostos se aproximaram. Inocência olhou para os lábios de Lara. Os sorrisos tornaram-se maiores e mais encabulados. O sino badalou pela segunda vez, o definitivo aviso para o fim do recreio. Lara acariciou os cabelos de Inocência, deu-lhe um breve beijo nos lábios. Inocência passou seu braço em torno de Lara, o definitivo beijo foi longo e apaixonado.

No dia seguinte fui buscar Lara na saída do colégio. Inocência despediu-se dela com um rápido beijo nos lábios. Outro, em mim – meu primeiro beijo nos lábios de Inocência. Flanei pelo dia, sem conseguir me concentrar em nada que não fosse a recordação daquele instante, sentindo-me bobo de tão feliz. Eu e Lara passeamos de mãos dadas pelo parque, ficamos olhando os patinhos nadando no lago.

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